Orgulho e Insensatez

"Insanidade é fazer sempre a mesma coisa, várias e várias vezes, esperando obter resultados diferentes." (Albert Einstein) 


O que dizer de pessoas que passam a vida insistindo numa atitude que as prejudicou a vida inteira, e, por tabela, aos familiares? Pessoas que ignoram a opinião alheia, insistindo teimosamente numa certeza irracional, recusando-se a olhar os fatos, e pior os resultados evidentes, pessoas que se recusam a viver no mundo prático e a desdenharem, com ar superior, as alternativas que se lhes apresentam.  Pessoas dispostas a usar os outros, a quem consideram inferiores, para provar suas razões, a qualquer  custo de tempo, de valores.
O tempo passa, e aquele suprassumo da inteligência esgotou todas as fontes de rendimento próprias e da família, sua vida só afundou, e com ele arrastou os familiares próximos, pais, filhos e cônjuges. Mas a sua atitude segue recalcada nas velhas teimosias, e então mais parentes são sacrificados para proverem o indivíduo, agora idoso, um incapaz sem condições de entrar num mercado de trabalho saturado e exigente.

O mais triste mesmo é que a partir do momento em que as cortinas se escancaram, a crueza da realidade é avassaladora, dolorosa. Passa-se a vida a cuidar de pessoas como se de incapazes se tratassem, como se de algum mal sofressem,  quando na verdade trata-se de indivíduos inteligentes com armas que lhes permitiriam ser muito bem sucedidos na vida. Infelizmente, àquela altura, o que sobrou vai muito além de uma promessa furada. Cai a venda e nos percebemos diante de uma figura patética, quase um inválido. 

O choque só se torna pior quando nos damos conta que ajudamos a empurrar aquela pessoa para a beira do penhasco. Interpretamos mal os sinais? O que aconteceu? Onde estávamos todo este tempo que não percebemos o que estávamos fazendo? Ou será que não quisemos ver? Afinal encontrar aquelas pessoas apenas no natal e ano novo, uma ou outra reunião familiar, não é propriamente uma forma de acompanhar as suas vidas. 

O ponto é que a situação se instala através de um elo fraco, geralmente uma mãe e ou pai, angustiados com aquele filho, em quem, intimamente, percebem uma incapacidade indefinível, algum mal que o torna um deficiente diante da vida. Por  sua vez, os outros filhos, ou outros parentes próximos, incapazes de verem o sofrimento daqueles pais, tornam-se cúmplices, sabendo no seu íntimo que o mal só irá crescer. 

Por outro lado podem ser máscaras para encobrir a interpretação daquela obra que há muito passou o ponto, perdeu todas as oportunidades e segue nos mesmíssimos parâmetros de comportamento que arrasaram com a sua vida, não conformado, mas acomodado e trancado no mesmo discurso, na mesma lengalenga, na velha choradeira de 20 anos atrás "Sou um azarado... de que adianta ser correto... a vida sorri para os mau caráter... Deus? Que Deus?" Não importa o que se lhe diga, os discursos alheios, as crenças, as perspectivas tornam-se motivo de escárnio, ouvidos mesmo só para a própria voz, as demais ricocheteiam em um escudo invisível. 

Assim nos descobrimos, por nossa vez, uns derrotados que viveram como se estivessem todos envolvidos em  uma grande causa, sendo que a realidade é outra. O que fizemos foi contribuir para a ruína daquela pessoa. Tanto passamos a mão em sua cabeça, que a relegamos à condição de uma criança dando os primeiros passos, sem nunca termos largado sua mão para que seguisse o rumo natural da vida.

Ana Maria e Letícia tinham tudo para serem bem sucedidas. Boa educação, bons exemplos dos pais , incansáveis batalhadores que tudo fizeram para proporcionarem aos filhos todo o conforto e facilidades que lhes faltaram. Enquanto Ana Maria se formou com honras, em Economia, em excelente faculdade estadual, Letícia, que nunca fora amiga dos estudos, fazia enorme esforço para não faltar ao curso de Biologia. Assistir aulas à noite, enquanto sentia a vida acontecer lá fora, tirava-lhe toda a concentração e, no final do mês, o salário ia inteiro para pagar faculdade particular, transporte e o lanchinho furreco no caminho para não morrer de fome durante as aulas. Um desafio que logo se mostrou bem maior que sua capacidade para sacrifícios e sua cegueira para um futuro que lhe parecia distante, como repetia nas intermináveis discussões com a mãe. Letícia achava um exagero de sua mãe, aquele drama todo sobre o futuro. 

"- Ora mãe, eu vou fazer faculdade, mas não agora. Vou terminar esse ano, trancar a matrícula e volto depois. Sou jovem, tenho muito tempo
- Querida, se você sair da faculdade, você não vai voltar. É tão pouco tempo, quatro anos voam.

Mas não teve argumento que demovesse Letícia de seu intento. Trancou a matrícula para nunca mais voltar. O dinheiro passou a ser para explorar possibilidades, viajar pelo mundo. Logo estava casada e com um filho, depois separada com um filho, e a dificuldade para arrumar emprego virou um drama. O mundo estava mudando, inclusive no Brasil e as exigências eram cada vez maiores. "Ah, se ela tivesse uma faculdade." lamentava a mãe. Aos trancos e barrancos ela ia vivendo, um entra e sai de empregos, com períodos de desemprego cada vez mais longos. Ah, se não fosse a aposentadoria dos pais! 

Mas e Ana Maria? A menina que prometia um grande futuro, estudiosa, responsável, que passara no vestibular da faculdade pública? Ana Maria arrumou um estágio num grande banco nacional, conheceu o que viria a ser o primeiro marido, e depois conseguiu um excelente emprego em uma multinacional, onde chegou à gerência. Um belo dia veio uma enorme crise e a empresa faliu. Uma crise que causou impacto no casamento. Daí para a separação foi um pulo. Desde então Ana Maria entrou em uma depressão da qual nunca se recuperou. Dessa separação, o marido espertalhão conseguiu ficar com todos os bens do casal e ainda a guarda do filho. Para tal bastou provar a incapacidade da mãe. Mesmo tendo casado novamente e tendo mais um filho, Ana Maria nunca mais recuperaria a alegria de viver. Deixou-se levar pela vida, pela rotina, sem qualquer sombra da menina ambiciosa de outrora, que sonhara alto. Novamente casada com um homem sem habilitações, sem profissão definida, a vida dos dois foi de tombo em tombo, e ali estava uma família inteira, pais idosos e irmãos preocupados, sustentando duas famílias mais. Pouco se comentava a situação daquelas duas filhas, duas irmãs. Havia como que um acordo tácito de simplesmente prover as necessidades delas. Falava-se em azar, infelicidade, mas no fundo todos sentiam o amargo sabor da frustração. A questão era 'Porquê em nome de Deus?'

O casal idoso que seguia sustentando duas filhas já na casa dos 60, e suas respectivas famílias, desistira de entender o que aconteceu com aquelas meninas a quem eles deram toda uma estrutura, mas que não conseguiram sobreviver às menores intempéries da vida e ali estavam naquela idade, mulheres gastas pela vida que só se tornou difícil, pelas próprias escolhas. O que seria o futuro delas?Uma preocupação que a família dividia, apenas as duas interessadas pareciam não se importar.   

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