Manipulação & poder

"Nós nos recusamos a ser quem vocês queriam que fôssemos, somos o que somos"Bob Marley

Assisti há muitos anos o filme A época da inocência. Entretanto não foi o fato de apreciar a obra de Scorcese ou de ser fã de diversos atores que compõem o elenco, mas a história em si, particularmente o personagem May Welland, interpretado por Winona Ryder, que permaneceu em minha memória.

Inicialmente a jovem e inocente May parece surgir apenas para fazer jus ao título do filme e como coadjuvante discreto na composição do personagem principal, que na história é o seu noivo. Entretanto, lá na frente, é este doce personagem que nos surpreende com os atos mais atrozes ao manipular ardilosamente os sentimentos de criaturas genuinamente refinadas pela pureza de suas almas e não condicionadas pela superficialidade das convenções sociais. E é aqui que o título da obra surge pleno de significado evidenciando a jocosidade e engenhosidade da autora da obra original, Edith Wharton.

Não foi à toa que Scorcese considerou esta a sua obra mais violenta. A mimosa criatura que a todos seduz com sua inocência angelical e seus floreios requintados é a venenosa ironia que tortura, com doce e matreiro sorriso, o casal apaixonado. Pegos pelas redes do destino, mas separados por melindrar uma sociedade que repudia e se ofende com as emoções popularescas e exuberantes demais para quem venera o requinte estudado e a superficialidade calculista.

Nesta trama situada no Sec. XIX encontramos similaridades com os nossos dias porque a verdade é que a essência humana independe de épocas, cultura, credo, raça ou gênero. Psicólogos dizem que o ser humano aprende a arte da manipulação desde o berço. Pais e mães podem confirmar e elucidar com vários exemplos o assunto. A manipulação parece assim inerente ao ser humano e mais do que a educação é a índole que vai determinar o bom ou mau uso dessa bagagem.

O pior é quando a manipulação é usada para o aniquilamento do ego que é a forma segura de enfraquecer uma pessoa, um grupo, uma população inteira. Infelizmente é esta a de maior uso corrente nas sociedades de todos os tempos. Lideranças inescrupulosas, em geral mídia, políticos e religiosos, manipulam as emoções da população ora instigando sentimentos positivos ora hostis e direcionando-os quando, como e para onde lhes convém.

Quando Lula diz “Companheiros” ele sabe o impacto que causa na população carente que com ele se identifica mantendo-se receptiva, dócil e cega à manipulação descarada. A câmera de TV dá um close nos olhos da mulher simples que desfila suas mazelas, para induzir a coitada às lágrimas. O calculismo está também presente nos tribunais quando o advogado aconselha a cliente a chorar para impressionar juiz e jurados, a usar roupas que componham a imagem criada. E aparece na sala de aula quando o professor carismático seduz e induz os alunos com ideologias pessoais.

Por vezes a manipulação vem de forma bem sutil. Conheci uma mãe que manipula a consciência dos filhos. “O seu tio tem muita sorte, você viu como seus primos cuidam dele? O plano de saúde dele dá direito a quarto particular...” Em pouco tempo ela tinha o mesmo plano de saúde que logo era orgulhosamente divulgado para o resto da família para mostrar que seus filhos também tinham boas condições e podiam lhe dar o melhor. O mesmo acontece quando deseja uma nova máquina de lavar, fogão, etc. Pouco estudo e alguma esperteza são suficientes para a manipulação das emoções alheias.

Pessoas de personalidade forte suscitam erroneamente a fama de bravas e até de maldosas, quando na verdade são as silenciosas, com jeito e cara de boazinhas que manipulam covardemente nos bastidores as situações. Articulando e armando tão ardilosamente que quando a bomba estoura ela permanece com sua cara de sonsa e alguém, muitas vezes o coitado que se expõe em suas investidas truculentas, acaba se queimando.

O jogo da manipulação é assim comumente usado por todos. É certo que pode ser de forma inocente sem conseqüências prejudiciais para terceiros, como o casal de namorados e seus joguinhos íntimos ou mulheres que se fazem de frágeis e ou infantis com chorinhos e muxoxos para terem o companheiro sempre à sua mercê.

O caso, no entanto, muda de figura quando a manipulação transforma as relações afetivas genuínas em falsas emoções, em ardis mesquinhos e calculistas para usufruto egoísta, como homens sem personalidade que fazem uso da força e poder monetário em casa, forçando a companheira a uma dependência exagerada.
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Por sua vez esta se acostuma de tal forma a essa obediência que em pouco tempo mal consegue ir ao cabeleireiro sem que o marido dê permissão e a leve. E tem um outro tipo de macho que mantém a mulher bem ocupada em seu papel de mãe e esposa, cobrindo-a de presentes caros para exibir às amigas e uma conta bancária para usar em caprichos, enquanto, por seu lado, sustenta uma vida dupla de amantes e outros excessos.

Curioso que até mesmo em salões de cabeleireiro podemos descobrir que Amélias subestimadas podem ser bem mais interessantes e espertas do que seus pretensos algozes. Por trás da comidinha gostosa, da camisa de gola impecável, dos rebentos com bochechas saudáveis, do marido pimpão, pode estar um ardil sutil para esconder a verdadeira voz de comando de uma mulher que tem o que deseja, que mantém um caixa dois, com os olhos no futuro. E tem ainda quem se serve de alguma doença – existente ou imaginária - para controlar todos em volta.

Jogos de poder estão assim em todas as relações. Algumas geram um usufruto mútuo, como o caso da estudante Geisy e sua famosa mini saia rosa. O caso ganhou as manchetes dos jornais, da rádio, da TV e páginas na Internet. Geisy foi exibida em palcos de programas popularescos, gerando simpatias e desconfianças. A aberração não estava em sua mini saia que ela tinha todo o direito de usar, até porque é uma peça de roupa mais velha que a jovem, a aberração foi a perseguição inexplicável e até doentia de seus colegas, estes sim dignos de serem exibidos no mesmo circo.

O saldo positivo do triste episódio é que Geisy soube reverter os ventos do infortúnio. Ganhou fama e dinheiro, e ainda realizou sonhos: lançou uma marca de roupas que tem na mini saia rosa a sua fonte criativa, fez plástica, foi convidada para posar nua, etc, etc, etc. Geisy ainda vai conviver durante muito tempo com olhares enviezados, esgares invejosos, cotoveladas indiscretas e comentários maldosos, mas tudo isso ela tira de letra quando diz que não procurou, não correu atrás, foi a situação “infeliz” que a colocou nos palcos.

Creio que todo o mundo já testemunhou ao natural casos tristes de manipulação onde há sempre um lado mais frágil. A história fictícia que deu vazão a esta reflexão é triste porque tal como na realidade não há um Happy End para as boas almas. Até mesmo na Internet encontramos vítimas de violência emocional, pessoas com cicatrizes profundas, viscerais, eternamente dolorosas.

Não há como saber se a vida sorriu plenamente para a jovem May, para as tantas mays que perambulam pelo mundo, podemos apenas especular. É possível que a paixão avassaladora de seu marido pela prima tenha permanecido como um divisor de emoções resguardadas de uma relação talvez morna e distante, sendo para a esposa refinada exatamente o que ela valorizava, a fachada conveniente, educada e respeitada pela sociedade hipócrita e fútil, ou melhor, pelo grupo socialmente favorecido e o verdadeiro ditador e manipulador de ideologias, regras e padrões. Isto não é ficção.

Fontes:
- Imagens do blog “Rosebud é o trenó
- Um filme por dia
- Ornitorrinco Cinéfilo
- Manipulação emocional: um truque do bebé?
- Propaganda e Manipulação
- Considerações sobre o quarto poder

Comentários

  1. Que beleza de texto, garota.
    Você abordou brilhantemente o assunto e olha que sou bem econômica com tal adjetivo. rsrs
    Eu não vi esse filme, mas quero deixar aqui meu protesto em relação à manipulação da mídia, que a meu ver, está passando dos limites.
    Num país como o nosso, onde a ignorância impera, a manipulação dos meios de informação é muito perigoso.
    Quanto à manipulação nas relações humanas, são perigosas também só que aí é menor o estrago, quantitativamente falando.
    abraços

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  2. Obrigada, Atena. Independentemente deste artigo, assista o filme pois vale bem a pena.

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