Em legítima defesa da honra

"Quem me rouba a honra priva-me daquilo que não o enriquece e faz-me verdadeiramente pobre."
William Shakespeare
"A grandeza não consiste em receber honras, mas em merecê-las."
Aristóteles

mens_conc_sabNão é freqüente ouvir-se a palavra honra, mas lembro do impacto de seu profundo significado em um romance lido há décadas. Eu era então uma menina vivendo numa época em que uma garota de 12 anos ainda era chamada de criança.

O título do livro e seu autor foram esquecidos, no entanto lembro que o drama acontecia em meados do sec. XIX, e enaltecia certos valores morais. Na história a combinação de lealdade e honra surgiam como ideais sublimes e privilégio ou dádiva restrita à aristocracia.

O romance em si nada oferece de extraordinário. Jovem e bela mulher de educação e nome nobres, sem dote, é abandonada grávida por rico e inescrupuloso aventureiro e acaba encontrando amparo em casamento com antigo e discreto pretendente aristocrata. O tempo passa e vamos encontrá-la feliz e tranqüila com dois filhos. O mais velho, da relação ilícita, agora com 15 anos, inocente de sua história, adora o “pai” que o criou como se de fato seu filho fosse.

Para entender o amor sublime e desinteressado deste homem é preciso lembrar que era uma época em que homens com a sua posição só levavam donzelas ao altar. Ele fora além. Ao dar o nome à criança, ele a transformou em seu herdeiro, tirando esse direito ao próprio filho, já que era uma época em que a fortuna e o título do genitor eram repassados apenas ao primogênito.

E como por vezes o destino parece tecer suas teias agindo com liberdade devastadora sobre nossas vidas, assim é na arte. O infeliz calhorda e genuíno pai da criança ressurge tão inescrupuloso como outrora, passando a assombrar a tranqüilidade da nobre e feliz família. Idoso, cansado da vida aventureira e preocupado com a possibilidade de morrer sem um herdeiro.

Desconhecendo as agruras de seus pais, o menino segue na normalidade de sua vida, em passeios e brincadeiras com o irmão menor de quem ele cuida com o maior zelo. É num desses passeios que ele vê a mãe encontrar o homem que passara a freqüentar sua casa e com quem ele instintivamente antipatiza.

Intrigado, aproxima-se do casal sem ser percebido e escuta chocado que o estranho é seu pai. Pior, ele ameaça sua família com o escândalo, caso sua mãe não o entregue. O menino morreria numa família e nasceria em outra, seria educado em terras distantes, segue falando o infame.

Surge de novo o destino, sentenciador e cruel. Entretanto é preciso entender que quando a espiral inverte o seu curso está na verdade correspondendo a uma cadeia de acontecimentos que as pessoas direta ou indiretamente instigaram.

É assim que quando o vil personagem sente no decorrer da conversa que a mãe não está disposta a curvar-se a chantagens, recorre a estratégia mais sórdida e perigosa, a manipulação da consciência com a inversão de papéis. Ele acusa a pobre mãe de vileza lembrando-lhe o ato desonroso: privilegiar uma criança bastarda, com um falso nome, tirando o direito ao irmão de herdar os bens e fazer jus ao que lhe pertencia de direito: o nome, a honra e a família.

Tal decisão impulsiona o desfecho do drama. Ofereceu um fim ao tormento dos infelizes pais, mas cobrou dividendos exorbitantes. Quando se é nobre no coração, a mente curva-se dócil e o espírito as entrelaça, é o trio divino – pai, filho e espírito santo. Na alegria e na dor. É um profundo sentimento de responsabilidade, lealdade e amor que leva o menino a tirar a própria vida.

Embora o ato extremo do personagem pareça estúpido nos nossos dias, ainda me causa certa comoção. Lembro do impacto da violência da morte e a carga dramática dos personagens, mas lembro também que em meio à emoção, achei o gesto do menino lindo e grandioso. Quando anos mais tarde eu vim a estudar estética e ética, pude entender perfeitamente os filósofos e suas alusões a sentimentos refinados e virtudes genuínas.

Ninguém precisa morrer por sua honra, mas quando a perda de tal bem recai injusta, a pessoa sangra por dentro, desfalece, porque infelizmente a leveza do ser é indiferente para quem nada entende de valores mas   é um sofrimento para quem assume as responsabilidades dos próprios atos - a consciência pesa. É para essas horas que vale a garra de não se entregar ao infortúnio, de negar ajudas duvidosas, de não ignorar a sua essência, a consciência do seu ser. A afronta à honra de alguém está prevista no código penal brasileiro, na sua totalidade, a honra subjetiva, auto-estima, e a objetiva, que é a dignidade que a pessoa goza no seu meio social.

Há vários significados para a palavra honra, mas apenas uma me satisfaz plenamente “sentimento da própria dignidade”, auto-respeito. Quando alguém possui esta consciência dentro de si, reflete-o externamente nos modos tranqüilos, comedidos, no respeito ao próximo. Isto é grandeza de caráter, elegância da alma - a genuína nobreza.

Gozar de reputação aprazível no ambiente que circula é o mérito do homem digno, que infelizmente não está livre de movimentações e burburinhos mal intencionados, e isto vale para as crianças, pois nem mesmo elas são poupadas das línguas ferinas e dos ardis maliciosos.

Se antigamente era suficiente ter um título de nobreza para ser dado como cidadão honrado, hoje a situação é pior, pois na maioria das vezes basta ter dinheiro e ou cargos de relevância social para receber honrarias. Já para o cidadão comum as coisas não são tão fáceis. Se a conta não for gorda, não tiver um cargo pomposo, um protecionismo avantajado, como um parente importante ou uma amizade bem situada na escala social, as desconfianças serão uma constante. É preciso ralar para conseguir uma simples colocação no mercado de trabalho, colocar a dignidade em risco para ser aprovado para um cargo minimamente importante e um equilíbrio beirando o excepcional, para manter a finura dos modos.

Certo é que todos os princípios éticos, valores morais e virtudes nobres têm seu cerne num quesito básico: respeito. E sabemos, sentimos e testemunhamos a toda a hora que é este um produto em falta. A sujeira que nos rodeia, o aumento do salário dos “nobres” deputados – só para não dizerem que não falei das flores - a buraqueira nas ruas e a operação tapa buracos em horários de pico, as buzinadas ensandecidas, os pedintes nas ruas, as filas, a desorganização do serviço público, os salários baixos e os estupidamente altos, os produtos quase vencidos nas prateleiras dos supermercados, a má educação enfim.

A falta de respeito está assim difundida, triste quando vem de pessoas idosas, porque se alguém chega ao final da vida e não aprendeu o básico o que essa pessoa deixa para seus descendentes? Que honras, que nobreza, que dignidade? Quer ter uma boa educação? Tenha respeito por si mesmo e pelo próximo. Esta a essência de toda a boa educação, o resto é verniz, artifício. Se você aprendeu o que é respeito, está com tudo. Come dignamente de boca fechada, porque ninguém precisa nem merece acompanhar a papa viscosa que vai surgindo no interior da sua boca e vai falar em tom ameno, porque se lhe têm respeito, ouvirão com prazer o que tem a dizer sem precisar sair do tom.

E porque o que você deseja para si mesmo, o deseja para todos, vá além...

Recolha o papel sujo do chão mesmo que não seja seu, e, se por acaso você vir alguém jogando algo, pegue e corra atrás, diga-lhe inocentemente que ele deixou cair “aquilo” e se o tal for cara de pau, ou melhor, um porcalhão consciente, indique-lhe com o seu melhor sorriso o cesto do lixo, já se de um inocente pobre de espírito se tratar, seja condescendente e ensine na maior paciência porque é importante jogar o lixo em local adequado.

Trabalhar só dignifica o homem quando e onde há respeito. Manter o amor-próprio e a nobreza do caráter numa sociedade em que a honra é tratada como tretas, atropelada na indignidade da injustiça social e desonrada na ética fajuta dos homens de lei é por si uma virtuosidade, coisa de aristocrata - aristocrata de alma.

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