A idealização dos laços familiares

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O nosso sonho pode ser o pesadelo dos outros.” Margareth Mead
A vida em família é condição natural no processo de evolução dos seres humanos. Há assim um consenso de que a família é o suporte para o desenvolvimento saudável de um indivíduo, repercutindo tal performance na sociedade, conceito  expresso na citação de  Sócrates de que as sociedades são o que são suas famílias.

Em poucos minutos de reflexão, percebemos que no que concerne a civilização, vivemos em um círculo doentio e claustrofóbico desde os primórdios. É tempo de perceber que não importa mais que paradigmas movem o comportamento social, qual modelo de formação familiar seguimos,  religião, regime político, ou de que forma somos afetados na era da tecnologia, a violência está diretamente ligada à formação das sociedades.

Para uma sociedade saudável o foco é o indivíduo, como ensina o I Ching: “se quisermos mudar o mundo precisamos primeiro corrigir o Estado, e se quisermos corrigir o Estado, precisamos primeiro corrigir a comunidade, se quisermos corrigir a comunidade, precisamos primeiro corrigir a família, e se quisermos corrigir a família precisamos primeiro corrigir o indivíduo.”*

Em qualquer época, o indivíduo absorve um determinado modelo e o traz para o seio familiar.  O mundo gira, transformações acontecem mas aquele modelo captado na sua infância, no ambiente em que se desenvolveu irão guiar sua performance. E porque a família goza de direitos e deveres mútuos, pais para filhos e filhos para pais, a influência e exemplo dos mais velhos é um processo natural e relevante na formação de valores do futuro adulto. E é aqui que os problemas podem originar-se.

Para além do modelo guia na educação dos filhos, de como as coisas devem ser, preceitos morais, culturais e religiosos, há a considerar a saúde emocional dos pais que podem passar para os filhos idéias fora da realidade. Crenças de superioridade, por exemplo, em relação aos outros de que a família é merecedora de direitos e privilégios especiais.

Aparecida desenvolveu uma baixa auto-estima e quando teve seus filhos, parece tê-los usado para se vingar do mundo. Criou neles a idéia de que sua moralidade era virtuosa e que portanto merecia tratamento de abelha rainha. Os filhos cresceram, alguns fizeram faculdade, casaram, mas o sentimento internalizado de que a sua família é um modelo de virtudes permanece como uma bússola. Todos se movem numa fidelidade canina aos desejos e regras da mãe, ignorante e semi-analfabeta. Além disso, a força dos laços familiares incutidos os faz ignorar fatos graves e monstruosos, como a pedofilia do pai e a desonestidade do irmão. O fator apelativo é a religião. As mazelas são discutidas entre quatro paredes e desculpadas por Deus, em vista do arrependimento.

O pecado espreita, se instala, mas é perdoado e esquecido em nome da família,  cujas regras estão acima de qualquer moral. A sociedade é assim movida por uma hierarquia de valores e cultura, onde o carro chefe são os laços familiares que estendem seus tentáculos, sua voz de comando, a todo o lugar. O juiz AR, religioso, nunca se detém a analisar os fatos quando precisa tomar a decisão sobre a custódia de uma criança. Sua mãe teve sete filhos e cuidou de todos. “Porque é assim que tem que ser.” Em seu entender homem não tem capacidade para cuidar de criança, e seria um pecado tirar os filhos de uma mãe. Os valores familiares fogem desta forma às grandes transformações, são colocados acima da justiça que é subjugada à moral deficitária de clãs.

Laços familiares podem ser opressores, um impedimento ou ameaça ao desabrochar da verdadeira personalidade de qualquer indivíduo e ao progresso como um todo. “Seu avô deve estar dando voltas no túmulo com esse casamento”, “Ela não é das nossas” são o tipo de comentário que podem causar um baita estrago em uma relação, a uma nova família em construção, tudo porque aquela pessoa não é digna de fazer parte da família, não se encaixa nos padrões inflexíveis e estúpidos. O indivíduo torna-se assim uma mancha no ambiente familiar - o invasor.

Tais ideais de comportamento podem estender-se a uma comunidade ou até mesmo a uma nação inteira e gerar um traço cultural marcante. O caso extraconjugal do presidente Bill Clinton, cuja repercussão paralisou o país, exemplifica bem a hipocrisia e a fraqueza da sociedade americana. A discussão sobre a legitimidade do aborto que dura há décadas foi em 1989 motivo para derrubar Lula, na sua primeira candidatura à presidência.

A pressão e violência psicológica das relações familiares obrigacionais pode inviabilizar a virtude individual, o uso saudável do livre arbítrio. Além disso há uma cadeia de inter-relações (família, estado, igreja) corrompidas pela dominação do fraco pelo forte, de dentro para fora e vice-versa. Agentes externos como a religião e a lei potencializam, exploram e promovem a iniqüidade e hipocrisia da fé e ideais de ordem e moralidade fajutas no inconsciente coletivo, no seio familiar, gerando um suplício, um desajuste nos que não se encaixam no modelo difundido.

Não há beleza na sociedade do mundo novo de Huxley**, mas ainda que a nossa existência possua a estética da herança genética transmitida naturalmente e a ilusão da liberdade e riqueza emocional espontânea, os laços que nos movem e guiam possuem a profundidade de um fio de cabelo. Há muita falácia e falsa beleza nos discursos oportunos, nas palavras bem colocadas e cuidadosamente escolhidas, nos ideais subversivas que dominam a ordem mundial, que apontam comportamentos despadronizados, inimigos ocultos e determinam as guerras, criando a ilusão da ordem e do bem comum e a difusão oculta do caos, porque somos nós mesmos os patrocinadores deste jogo sujo e todos estupidamente vítimas, indivíduos de família e para a família, a face oculta da falsa ordem, do falso progresso - do eterno retrocesso.

Imagem do blog “Hey dog

Comentários

  1. Laços familiares... se muitas vezes erramos nas escolhas e sofremos, inevitável aqueles que Deus nos deu. Relações interpessoais sao complicadas, vai empatia, respeito, tolerancia e amor. Quando temos um meio familiar saudavel, normalmente, é fundamental para o bom crescimento psicologico dos filhos. A familia é como uma raiz, ela vai se esticando para os lados e tudo faz parte, tirar uma ramificação pode ser desastroso, melhor cuidar.

    Otimo texto, amiga! beijos

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