O mal-estar cultural

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"As nossas possibilidades de felicidade são assim limitadas desde o princípio pela nossa formação. É muito mais fácil ser infeliz." Freud
Já mencionei em outros artigos, a conduta auto destrutiva da humanidade, que não deve causar espanto já que individualmente essa característica fica mais evidenciada. As origens podem ser diversas: cultura, religião, família que bombeiam nosso inconsciente com normas, rótulos, regulamentos que vão muito além da padronização de costumes e seguem perpetuando males antigos.

Isto porque, desde pequenos nos empurram gostos, preocupações e propósitos que, quando não alcançados ou simplesmente recusados, geram culpas, infelicidade, conflito quando não, a sensação de não se encaixar em lugar nenhum e que pode levar à baixa auto-estima, por exemplo, ao isolamento, à depressão e daí para algo pior e é aqui que volto ao tema inicial - a autodestruição, para mim o maior paradoxo da humanidade, um mal-estar cultural.

É isso mesmo, você deve estar lembrando a expressão que dá título à obra de Freud “O mal-estar da civilização” onde o famoso psicanalista se detém sobre estas mesmas questões. O processo de desenvolvimento cultural para que as pessoas possam conviver em sociedade gerou um paradoxo  condenando o homem à infelicidade eterna, incessante, cíclica. Foi a conclusão do mestre no uso de suas ferramentas psicanalíticas. De que a própria cultura humana, implica numa infelicidade dos indivíduos, tendo como subproduto um alienável e generalizado sentimento de culpa. Isto porque, existe um antagonismo intransponível entre a pulsão e as exigências da civilização. Para o bem da civilização, da sociedade, o homem deve sacrificar sua satisfação pulsional.

Para Freud, cada homem é inimigo da civilização, possuindo todos tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais. Há assim uma eterna luta do homem com ele mesmo, como um grito silencioso por sua liberdade roubada em prol da comunidade. O sustentáculo de tudo seria a religião, sua simbologia e rituais, a via crúcis de cada um, ou o que a filosofia chama de a trajetória do herói que sacrifica o próprio ego, a vida,  por um bem maior, a família, a comunidade, o país. Este o cerne de todo o sacrifício. Por vezes até atos aparentemente fúteis podem esconder um sacrifício silencioso. 

O soldado que vai para a guerra defender o país, o explorador/cientista que se infiltra na floresta desconhecida e cheia de perigos, a mulher que cala a violência doméstica, o filho que segue obediente os passos do pai, a mulher que vai para o altar com o homem que pode ajudá-la a tirar a família da pobreza e segue suspirando pelo namorado pelintra que só tinha o amor e a cabana para oferecer, o homossexual enrustido que sacrifica sua condição para se adequar aos padrões familiares, em nome da moral e dos bons costumes, o chefe de família que é admirado na comunidade por seu exemplo de conduta, a mãe que trabalha fora de casa e se esforça para provar à sociedade que é tão boa quanto as mulheres que renunciam a uma vida própria pelos cuidados com a família, ganhando status de santas. 

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Desde muito cedo a criança percebe que a vida implica em sacrifício para cada membro da família. O doloroso é que os padrões tomaram de tal forma as sociedades, o inconsciente coletivo, que o homem perdeu-se num labirinto de medos e sobressaltos por situações que de insignificantes, ganharam status de odisséia, se agigantaram, ignoraram as expectativas do possível pulando direto para o inferno do insuportável.

Quantas relações de negócios, familiares, são empurradas com  a barriga em nome  dos bons costumes? Quantas vezes o casal vive uma situação marital conflitante não só entre eles, mas com suas próprias consciências? O conflito pode ser silencioso, doloroso e a falta de coragem em chutar o balde pode levar a muitos caminhos, inclusive ao desequilíbrio.

É o que acontece com o chefe de família admirado pela comunidade que  perde os bens e incapaz de falar à família que a bela casa precisa ser vendida, o BMW trocado por um carro popular, mudar do colégio caro para a escola pública e aprender a viver sem empregada, prefere fechar-se em um quarto de hotel e dar um tiro na cabeça. O mesmo caminho segue o estudante que acabou de se formar em medicina e nunca teve coragem de falar aos pais que aquele não era o seu sonho. A casta mãe que decidiu dedicar a vida aos rebentos e ao marido, mas sente que entrou numa roubada, numa sexualidade castrada, mergulha de cabeça numa aventura extraconjugal acabando presa na pior das armadilhas: como falar que não é aquela mártir que nasceu apenas para fazer gostosos quitutes, trocar fraldas e mimar o maridão cansado ao final do dia? 

Há assim inúmeras situações que jogam por terra todo e qualquer modelo de comportamento ideal. No que se refere a seres humanos não pode haver verdades incontestáveis. Passamos a vida representando papéis estruturados no inconsciente, os famosos arquétipos: o guerreiro, o órfão, o inocente, o mago, o nômade, o mártir, mas a própria dinâmica da vida, das relações pessoais e sociais criam situações que ressuscitam anseios e sonhos perdidos na obrigatoriedade das regras, dos paradigmas. 

A tragicômica série de TV, Desperate Housewives, exemplifica com maestria a vida de famílias aparentemente perfeitas, em casas maravilhosas com jardins floridos que sugerem o paraíso. No entanto quando a câmera invade a privacidade dessas pessoas de aparência igualmente perfeita, mostrando os segredos, as angustias, as desilusões, as tramas, a verdadeira face, enfim, percebemos rindo que a perfeição nem sonho pode ser e que a grama do vizinho não é tão mais verde. Isso geralmente passa batido no nosso dia a dia porque tendemos, ou fomos treinados, a olhar o superficial, a casa bonita, os filhos impecáveis, o carrão na garagem, a esposa boazuda...

Bastaria um olhar analítico, uma boa dose de reflexão para captarmos que muitas vezes o estranho comportamento das pessoas, principalmente de pessoas famosas, cuja vida está sempre sob o foco da mídia, da curiosidade, da ganância do profissional observador, é mais um grito de socorro que uma bizarrice circense. 

Antes, porém, de aceitar a maçã que nos cai direto na mão sem saber de onde veio, de olhar criticamente, ou até com inveja, o vizinho, devemos nos deter na nossa vida: será que a imagem que exibimos para os outros mostra nossa verdadeira personalidade? Afinal o que os outros percebem da nossa pessoa e até quanto dessa percepção alheia é por nós alimentada? O resultado desse laboratório interno pode resultar em respostas inesperadas, talvez amargas.

Não há nada de mal em querer ser o herói da pátria, já modelo de comportamento é uma tremenda gelada que em algum momento vai exigir ou a revelação do herói interno, aquele que vai lutar contra os padrões, as tradições, se preciso for, para se realizar como pessoa, ou seguir como um mártir para o bem da família, da comunidade, do país.

Fontes:  
“O Mal-Estar na Civilização” (1930) - Resenha
Img1: TVSA 
Img2: Papagai de pirata

Comentários

  1. Por esses dias, li um artigo na revista Época, em que um psicólogo americano da Universidade de Yale (não me lembro do nome dele) diz que a ilusão é fundamental para a satisfação humana.

    É como o ser humano, instintivamente, achasse que quando encontrasse a verdadeira felicidade não haveria mais progresso, pois que não teria mais pq lutar. A insatisfação é a mãe da luta, da guerra interior. No íntimo, o ser humano acha que descanso só há para os que estão no túmulo, na "verdadeira" Paz. Se soubessem que não é bem assim...

    Para continuar lutando, o homem precisa continuar querendo, ansiando,se consumindo por coisas que não serão nunca suas. É assim que ele combate o egoísmo, para não se apegar ao que já tem, para não se amalgamar e se render aos seus ídolos. Precisa almejar tanto uma felicidade inalcançável como adorar um Deus em Antares.

    Abçs!

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  2. Irei procurar a matéria. Mt obrigada pela colaboração.

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