Teias da mente

Gente boa acaba no inferno por não se perdoar”, do filme Amor além da vida*

A frase acima ficou gravada na minha memória. Vira e mexe vem à tona. A história do filme é sobre um casal que perde os filhos em um trágico acidente. A mãe desenvolve um sentimento de culpa tão forte que acaba internada em um sanatório. Anos depois já reabilitada, a tragédia repete-se, desta vez com a morte do marido. Sozinha ela acaba suicidando-se.

Gente famosa ou comum, ricos ou pobres, jovens, idosos e até crianças, ninguém está livre de chegar a um desespero tal que passa a olhar a morte como uma libertação e os motivos são diversos: vítimas de violência, dívidas, amores não correspondidos, solidão, sentimento de abandono ou perda, sensação de que não se encaixa no mundo, sentimentos exacerbados de desesperança, rejeição, culpa extrema, tristeza profunda, falta de coragem, sentimento de impotência, medo ou baixíssima auto-estima. Mas existe ainda um tipo de suicídio em que a pessoa morre lentamente sem se dar conta disso. Um choque traumático leva o indivíduo a embrenhar-se em sentimentos destrutivos e descontrolados, desencadeando um estresse crônico que por sua vez leva ao enfraquecimento do sistema imunológico.

Mariana sonhou a vida inteira conhecer o pai famoso, até que um dia, teve permissão da mãe para tentar um contato. Sem sucesso decidiu contratar um advogado. Mexeriqueiros de plantão farejaram a história e o homem famoso não gostou da propaganda negativa. Aconselhada pelo advogado, Mariana decidiu levar o caso à justiça e resgatar o direito de substituir a expressão “pai desconhecido” na sua certidão de nascimento por um nome. Fotos dos dois impressas lado a lado, mostravam a extraordinária semelhança entre pai e filha. O exame de DNA só comprovou o que era óbvio para todos. O pai sequer concebia a idéia de um contato. A sensação, para quem acompanhava a história pela mídia, é que o homem tinha aversão à jovem.

Dali em diante Mariana amargou humilhações. Seu pai adotou a filha da nova esposa, uma criança loira e linda como a mãe e recebeu de braços abertos mais uma filha já adulta que, tal como Mariana, queria ser reconhecida pelo pai, uma bonita modelo que seu pai exibiu com orgulho, como mostrava o sorriso largo e o abraço dos dois na revista. Na mesma matéria ele fez questão de falar de seus cinco filhos: um casal do primeiro casamento, a bonita criança adotada, nascida de uma relação antiga de sua atual esposa, o garoto que nascera recentemente e a modelo.

Aquela altura, Mariana já estava com o emocional em frangalhos.  Casou, teve um filho, mas a revolta e frustração eram brasas queimando suas entranhas. Dias, semanas, meses e anos de amargura e tristeza abalaram seu sistema nervoso. O sonho inocente e compreensível de menina virou um inferno astral na vida adulta. Seus sentimentos se alternavam entre o arrependimento e a revolta. Começava questionando se seu pai não teria razão, afinal quem primeiro arrumara um advogado fora ela. O que poderia ter feito? A verdade é que fora ingênua a ponto de achar que seu pai ficaria feliz quando se visse espelhado nela.

O sonho colorido de uma menina sendo levantada no ar pelo pai, o abraço apertado na adolescente esportista e o olhar paterno orgulhoso na sua formatura nunca ocorreu. Ele sequer mostrou interesse pelo neto, que herdara os mesmos traços fortes do avô. Mas assim como vinha o arrependimento, surgia também a revolta e logo a raiva. Em toda a sua vida, ela se esmerou em ser uma filha, aluna e profissional exemplar para seu pai sentir orgulho. A mãe nunca pensou em aproveitar-se da situação, criou a filha enfrentando todas as dificuldades de uma mulher sozinha, sem recursos e precária formação escolar. Mariana acompanhou a vida do homem famoso, que por acaso era seu pai, como qualquer fã ou filha amorosa, recortando e guardando tudo o que era publicado. Agora ali estava ela, com o documento acusando a paternidade famosa, mas o parentesco pública e humilhantemente rejeitado.

Com predisposição genética para uma extensa lista de doenças, o organismo debilitado de Mariana desenvolveu a pior. Ela lutou para curar o corpo, mas para a dor da alma não achou remédio e o câncer venceu. Sua morte foi noticiada, mas não alardeada. Se seu pai sentiu ou comentou algo, só os íntimos podem dizê-lo.

Histórias como a de Mariana existem aos montes, algumas pessoas recusam-se a deixar-se afetar e o episódio fica relegado a algo sem importância; outras vencem os sentimentos destrutivos e saem da experiência fortalecidas e outras ainda enleiam-se nas urdiduras do inconsciente e ali permanecem com a mente trancafiada num buraco negro ecoante de dor, dor que tortura a alma, aniquila a mente e mata lentamente.

Título Original do filme: What Dreams May Come
Estresse e Saúde Como os traumas emocionais influenciam nossas vidas
Violência e trauma emocional

Comentários

  1. I own this movie on DVD and I was as moved by it as you. Humans harm each other in acts of omission as well as commission. We sometimes overlook the sins of omission as "not so bad" but they are just as traumatic.I think in my life, with my own personal trauma, the acts of omission have been harder to heal than the acts of commission done against me.

    Great post, thank you for this.

    ResponderExcluir
  2. Essa historia é semelhante a historia da filha do Grande Pelé jogador mundialmente reconhecido.
    Alias mais conhecido que coca-cola e Lee.
    Uma pena que ambos não tem e nem procuraram saberem de outros valores,no caso o valor carmico e a pré disposição de perdoarem-se a si mesmo ,e um ao outro nessa vida.
    Não há julgamentos porque ambos mesmo se tratando,de uma historia tão triste de amor não correspondido...foram ambos inocentes!
    Se houvesse ao menos da parte da filha do Rei Pele um pouco de educação espiritual,haveria melhor compreenção da parte da mesma,e uma outra conduta seria e poderia ser tomada.
    Eu tambem amo meu pai,fui afastada dele por motivos da dura separação dos meus pais.
    E se pudesse escrever o que sofri nas mãos da minha mãe que hoje sei que era doente psicologicamente naquela epoca...
    Bem só poderia escrever a cada linha a palavra:Muito Obrigada por Manter-me em total equilibrio.
    São laços eternos de amor o circulo da familia.
    Ao menos no meu parecer!!!
    São alços de amor!!!
    Excelente topico!

    ResponderExcluir
  3. Tem muitas histórias como a de Pelé e sua filha. Quando escrevi este texto lembrei particularmente de Ana e Jonas, porque conheci ambos muito bem. Quando Jonas morreu eu era adolescente, mas a sua vida marcou-me muito. Quando Ana morreu, também de câncer, os demônios dentro de mim me consumiam demais e sua morte me jogou na pior das depressões, porque a vida parecia insuportavelmente injusta mas eu decidi que estava na hora ou de definhar até o fim ou reerguer-me. Fui atrás de mecanismos que me fizessem entender a vida, a minha e a dos outros, como sempre a leitura, particularmente a filosofia, foi a salvação.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Este espaço é seu.
Deixe sua opinião ou se preferir conte uma história. Peço apenas que seja educado.
Obrigada, volte sempre.

Postagens mais visitadas deste blog

A "empatia" seletiva

Pensamentos dominantes